Deliberações ingénuas do umbigo. Pode um homem revoltar-se sem armas?

sexta-feira, julho 11, 2003

Adolescência:

Se eu tivesse um blog nos meus desassete anos certamente que punha este excerto:

"Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam na algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de víceras e dormes tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face."

em Aparição de Vigilio Ferreira

Como já tenho um blog...

Henry Miller

"Estas catrástrofes cujas provas tipográficas revejo exercem sobre mim um maravilhoso efeito terapêutico. Imagino um estado de imunidade perfeita, uma existência mágica, uma vida de absoluta segurança no meio de bacilos tóxicos. Nada me toca, nem colisões, nem guerras, nem revoluções. Estou vacinado contra todas as doenças, todas as calamidades, todos os desgostos e todas as angústias. É a culminação de uma vida de firmeza. Sentado no meu nichozinho, passam-me pelas mãos todos os venenos que o mundo expele diáriamente. Nem sequer uma unha fica manchada. Sou absolutamente imune. Estou ainda melhor do que um ajudante de laboratório pois aqui não há maus cheiros, há apenas o cheiro de chumbo derretido. O mundo pode estoirar, mas eu estarei aqui, do mesmo modo, para por uma vírgula ou um ponto e ví­rgula. Até talvez faça umas horazitas extraordinárias, pois a dar-se um acontecimento desses haverá com certeza uma última edição extra. Quando o mundo tiver explodido e a última edição tiver ido para a tipografia, os revisores recolherão calmamente todas as vírgulas, todos os pontos e vírgula, hífenes, asteriscos, parêntesis curvos e rectos, pontos de exclamação, etc., metê-los-ão numa caixinha e colocá-los-ão em cima da cadeira do chefe de redacção. Comme ça tout est réglé..."

em Trópico de Câncer

terça-feira, julho 08, 2003

Para o João: Lembro-me da última vez que vi o João, sim foi a última, porque hoje o João morreu. O João foi meu colega na escola, na preparatória. Ele um ano chumbou e ficou para trás. Eu continuei a estudar e mudei-me para a cidade, ele ficou na nossa terra, a trabalhar com o pai. Um dia fiquei gravemente doente, o João também. A minha doença teve cura. A do João não. E foi nessa altura que vi o João pela última vez. Ele perguntou-me como é que estava, ao que eu respondi que já estava bem, que tinha sido só um susto. E a seguir perguntei eu como é que ele estava, ao que ele me respondeu que já estava bem, que tinha sido só um susto. A mentira estava-lhe estampada no rosto e via-se-lhe o medo nos olhos. Ainda hoje não conheço palavras de despedida para quem tem o destino escrito numa folha de papel. Por isso Hoje me despeço de ti, João, com o mesmo Até Amanhã da última vez que te vi.

Lápis Azul Estado-Unidense: Segundo o jornal Público de ontem, "Regras recolhidas em "The Language Police", de Diane Ravitch, a partir das directivas de editores de manuais e exames para escolas dos EUA. O rol não é exaustivo: uma lista semelhante ocupa mais de 30 páginas e Ravitch continua a receber novos exemplos dos leitores."
Eis o que as crianças não podem ler:

Palavras Proibidas

-Actriz (palavra considerada sexista; usar actor para os dois sexos)
-Adão e Eva (usar "Eva e Adão", para mostrar que os homens não têm precedência)
-Anão (usar "pessoa de reduzida estatura")
-Deus (banida por ter ser discriminatório para os não cristãos)
-Diabo (idem)
-Escravo (Substituir por "escravizado")
-Gordo (usar obeso ou pesado)
-Homem Cro-Magnon (usar "pessoas Cro-Magnon")
-Iate (banida, considerado elitista)
-Maluco, Doido (usar "pessoa com problemas emocionais")

Temas a evitar em manuais

-Magia, Sobrenatural
-Morte
-Aborto
-Doenças
-Teoria da evolução
-Religião
-Questões militares
-Desporto
-Terminologia agrícola, financeira, júridica, científica
-Política
-Estilos musicais "controversos" (rap, rock n'roll)
-Desemprego
-Criaturas "assustadoras" ou "sujas" (ratos, morcegos, escorpiões)

Livros banidos

-"Huckleberry Finn", Mark Twain
-"Não Matem a Cotovia", Harper Lee
-"Admirável Mundo Novo", Aldous Huxley
-"Uma Agulha no Palheiro", J. D. Sallinger
-"Adeus às Armas", Ernest Hemingway
-"Diário", Anne Frank
-"As vinhas da Ira", John Steinbeck
-"Voando Sobre um Ninho de Cucos, Ken Kesey
-"Fahrenheit 451"(irónicamente, um livro cujo o tema é a censura), Ray Bradbury
-"Harry Potter", J.K. Rowlings

Retira-se desde cedo o sentido crítico aos futuros Homens. Porquê a surpresa no massacre de Columbine?

segunda-feira, julho 07, 2003

Canto de mim mesmo

"Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu terás de assumir,
Pois cada átomo que me pertence, por assim dizer, pertence-te.

Ando sem destino e convido a minha alma,
Inclino-me e calmamente observo uma haste de erva estival.

A minha língua, cada átomo do meu sangue, concebidos deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais e de seus pais que também aqui nasceram,
Começo agora com trinta e sete anos, de perfeita saúde,
E espero não parar até à morte.

Deixo credos e escolas em suspenso,
Retiro-me um pouco, saciado deles, mas não os esqueço,
Dou abrigo ao bem e ao mal, permito-me falar correndo todos os riscos,
Natureza incontrolada com a sua energia original.

Casas e salas estão cheias de perfumes, as prateleiras estão repletas de perfumes,
Eu mesmo respiro a fragância e conheço-a e gosto dela,
A essência embrigar-me-ia também, mas não o vou permitir.

..."

Walt Whitman, in Folhas de Erva - Relógio D'Água